Urina na diálise – Função renal residual

Dra. Renata Campos

Atualizado em

comment 12 Comentários

Tempo de leitura estimado do artigo: 5 minutos

O que é função renal residual?

Chamamos de insuficiência renal crônica ou doença renal crônica (DRC) a condição na qual os rins perdem de forma permanente e progressiva a capacidade de efetuar suas funções básicas, incluindo eliminação de toxinas, controle do volume de água no corpo, regulação do pH sanguíneo, controle da concentração de eletrólitos (sais minerais) no sague e produção de hormônios.

Nossos dois rins filtram, em média, 180 litros de sangue por dia, mais ou menos 90 a 125 ml por minuto. Esta é a chamada taxa de filtração glomerular (TFG). Quanto menos sangue os rins são capazes de filtrar a cada minuto, mais baixa é a taxa de filtração glomerular.

Ao contrário do que muita gente imagina, as pessoas com doença renal crônica não precisam de diálise somente quando os rins deixam de funcionar completamente, mas sim quando a função renal cai abaixo de um determinado patamar, em que os sintomas da doença renal começam a afetar a qualidade de vida do indivíduo e a colocar a sua saúde em risco. Em geral, os pacientes precisam de diálise quando a TGF encontra-se abaixo de 15 ml/minuto, mas alguns pacientes podem tolerar valores abaixo de 10 ml/minuto.

Portanto, quando o paciente tem doença renal crônica avançada e precisa começar alguma modalidade de diálise, seja ela hemodiálise ou diálise peritoneal, os rins dele ainda apresentam alguma capacidade de filtração do sangue, que chamamos de função renal residual.

Pacientes em diálise ainda urinam?

A produção de urina não deve ser considerada isoladamente para avaliação do grau de comprometimento renal. Obviamente, se o paciente não urina nada ou urina muito pouco, imagina-se que sua função renal esteja bem prejudicada, mas o contrário não é verdadeiro.

Muitos pacientes começam a fazer a diálise ainda com volume urinário absolutamente normal, ou até mais elevado do que o habitual. Isso acontece porque a parte dos rins que é responsável pela retenção de água e concentração da urina também está comprometida pela doença renal crônica.

Sendo assim, os rins doentes perdem a capacidade de concentrar a urina, resultando em excreção de quantidades elevadas de água mesmo quando a função renal já está bastante reduzida. A urina produzida por um paciente com insuficiência renal avançada tem mais água e muito menos toxinas e eletrólitos que a urina de uma pessoa saudável.

Entretanto, a doença renal crônica é progressiva e continua avançando mesmo após o início da terapia dialítica, o que significa que a tendência é que todos os pacientes deixem completamente de urinar depois de algum tempo, o que pode levar meses ou anos para ocorrer.

A velocidade de progressão da doença varia de caso a caso, dependendo, dentre outros fatores, da causa da doença renal, do tipo de modalidade de diálise escolhido e do uso de fármacos que possam comprometer a função renal. 

Importância da função renal residual

Já está bem estabelecido que a função renal residual influencia a mortalidade, a morbidade e a qualidade de vida dos indivíduos em diálise. Quanto mais tempo a função renal residual for preservada, melhor será o prognóstico do paciente. 

A presença de algum grau de função renal residual influencia o volume urinário produzido, mas também contribui para a eliminação de toxinas que são normalmente excretadas por via renal.

Sendo assim, as principais vantagens de se preservar ao máximo a função renal residual são:

Remoção de toxinas 24 horas por dia

Os rins funcionam 24 horas por dia em contraste às 12 horas por semana (4 horas, três vezes por semana) que o tratamento com a hemodiálise é capaz de fazer.

Mesmo a função renal estando bem limitada nos estágios finais da DRC, ainda assim consegue-se uma excreção maior de vários elementos através da urina do que na diálise, simplesmente pelo fato dos rins funcionarem continuamente.

Além disso, certas moléculas não são bem dialisáveis, ou seja, não podem ser eliminadas pela diálise de forma eficiente. Quando o paciente perde totalmente a capacidade de excreção renal, numa fase mais avançada em que deixa totalmente de urinar, essas moléculas acumulam-se, contribuindo para os efeitos deletérios da doença renal no organismo.

Maior regulação de líquidos e de determinados eletrólitos, como o potássio

Os pacientes que perdem sua função residual já não urinam tanto e possuem maior dificuldade em gerir o acúmulo de líquidos, uma vez que não existe nenhuma forma de retirá-lo a não ser durante as sessões de hemodiálise.

Da mesma forma, o potássio ingerido através dos alimentos se acumula mais facilmente se não existe outra forma de eliminação além do tratamento dialítico realizado somente três vezes por semana. 

Melhor controle da pressão arterial

Nos pacientes em diálise, o acúmulo de sódio e de líquidos influencia bastante os níveis de pressão arterial. Quanto maior for a retenção de sal e água, maiores serão os valores apresentados pelo paciente.

Desta forma, enquanto os rins continuam capazes de eliminar pelo menos uma parte do excesso de sal e de líquidos através da urina, mais fácil é o controle da hipertensão arterial.

Menor ultrafiltração na dialise

A retirada de líquido pela diálise é chamada de ultrafiltração. Em geral, o paciente com doença renal crônica terminal ingere uma quantidade de líquidos maior do que é capaz de excretar. Sendo assim, a ultrafiltração nas sessões de hemodiálise e na diálise peritoneal são essenciais para controlar o volume de água no organismo.

Se o paciente ainda produz urina, não precisa contar tanto com a diálise para retirar o excesso de líquidos ingerido ao longo dos dias. Quanto maior for a função renal residual, menor será a taxa de ultrafiltração necessária em cada sessão.

Quanto menor for o volume de líquido ultrafiltrado em cada sessão de hemodiálise, mais “suave” será o tratamento. É preciso destacar que o paciente com rins funcionantes elimina água de forma constante. A bexiga está sempre em processo de enchimento. Já o paciente em hemodiálise que não mais urina só tem aquelas 4 horas de cada sessão para retirar o excesso de líquido.

Portanto, se o volume a ser ultrafiltrado nas sessões de hemodiálise for menor, isso significa menos chances do doente apresentar episódios de câimbras, mal-estar e hipotensão arterial, que pode levar à isquemia cerebral ou isquemia e arritmias cardíacas. Menos complicações na diálise significa melhor prognóstico.

Na diálise peritoneal, a retirada de líquidos está diretamente ligada à concentração de glicose nas bolsas de diálise. Quanto maior for a necessidade de ultrafiltrar, mais glicose será necessária nas bolsas. Assim sendo, pacientes que ainda urinam bem apresentam menor exposição do organismo e da membrana do seu peritônio à glicose, bem como menor ganho de peso, o que contribui para um melhor prognóstico global do paciente.   

Aumento da sobrevida

Vários estudos já demonstraram que existe uma relação direta entre a preservação da função renal residual e a sobrevida dos pacientes tanto em diálise peritoneal quanto em hemodiálise. 

Especificamente em relação à mortalidade cardiovascular, esta relação é inversa, ou seja, quanto maior é a função renal residual, menor é a mortalidade cardiovascular. 

Melhor controle metabólico

Pacientes com função renal residual em diálise apresentam menos anemia, menos doença óssea, valores mais controlados de ácido úrico e de colesterol, melhor estado nutricional e menor retenção de ácidos. 

Menos risco de peritonite

Todos os pacientes que fazem diálise peritoneal correm risco de apresentar infecção da cavidade abdominal, chamada de peritonite. Por mecanismos não muito bem esclarecidos, pacientes com função renal residual têm menor risco de apresentar peritonite.

Menor risco de hospitalização

Em suma, todos os benefícios descritos acima traduzem-se em menores chances de complicações e consequentemente, de internação hospitalar. 

Fatores modificáveis que influenciam a função renal residual

Por tudo que foi exposto acima, preservar ao máximo a função renal residual e a diurese na diálise tem grande importância no prognóstico a longo prazo do paciente com insuficiência renal terminal.

A perda da função renal residual é um processo progressivo e inexorável, mas que pode ser acelerado ou retardado dependendo de como o paciente é tratado pelo seu médico nefrologista.

Alguns fatores que podem influencia na função renal residual são:

Hipotensão arterial durante as sessões de diálise

Quando o paciente apresenta frequentemente queda da pressão arterial durante as sessões de hemodiálise, fato normalmente associado à elevada remoção de líquido durante o tratamento, pode haver redução da quantidade de sangue que chega aos rins e consequentemente perda de função renal.

De forma semelhante, os pacientes que fazem diálise peritoneal podem ficar desidratados se for necessária elevada taxa de ultrafiltração a cada troca de bolsa.

Hipertensão arterial não controlada

O descontrole agudo da pressão arterial pode adicionar mais lesão a um rim já doente em consequência de anos e décadas de hipertensão arterial mal controlada. Controlar a pressão durante as sessões de diálise, portanto, é essencial para preservar a função renal.

Uso de diuréticos

Os diuréticos ajudam a manter a eliminação renal de líquidos e caso não exista nenhuma contraindicação, devem ser mantidos mesmo se o paciente fizer diálise.

Eventualmente, haverá uma altura em que os rins já estarão muito comprometidos e não serão mais capazes de responder ao uso dos diuréticos. Nesta fase, a ausência de benefício aliada ao risco de efeitos colaterais justifica a sua interrupção.

Uso de IECA e ARA2

Nos pacientes hipertensos em diálise peritoneal ou hemodiálise, o uso de anti-hipertensivos das classes IECA ou ARA2, como enalapril, ramipril, losartan e irbesartan, parece desacelerar a perda da função renal residual, sendo estes considerados os medicamentos de escolha para controle da hipertensão arterial nos pacientes em diálise.

Uso de medicamentos nefrotóxicos

Se o paciente tem ainda função renal residual, deve-se fazer todo o possível para mantê-la.

Evitar fármacos nefrotóxicos, ou seja, medicamentos que sabidamente alteram a função renal, como os anti-inflamatórios, é uma das formas de prevenir a perda de função residual. 

Contraste iodado

O uso de contraste venoso à base de iodo para realização de exames radiológicos, como tomografia computadorizada ou angiografia, pode levar a comprometimento da função renal. Caso possível, os pacientes em diálise que ainda tenham função renal residual devem evitar submeter-se a este tipo de exame complementar.  

Modalidade de diálise utilizada (hemodiálise x diálise peritoneal)

Alguns estudos mostram que as pessoas submetidas à hemodiálise apresentam perda mais acelerada da função renal residual do que aquelas que fazem diálise peritoneal. No entanto, com os avanços alcançados nos últimos anos no tratamento por hemodiálise, essa diferença parece não ser mais relevante.

Fatores não modificáveis que interferem com a função renal residual

Infelizmente, nem todos os fatores que influenciam a perda da função renal residual podem ser modificados.

Tempo em diálise

A função renal residual vai se reduzindo com os anos e quanto mais tempo o paciente permanece sob diálise, maior será a diminuição. Eventualmente, todo paciente em diálise perde completamente sua função renal.

Doenças cardíacas e vasculares

A presença de doença coronária, episódios de infarto e isquemia miocárdica, insuficiência cardíaca e doença aterosclerótica difusa estão relacionados a maior rapidez na perda da função renal residual.

Proteinúria

A proteinúria, nome que damos à perda de proteínas na urina, é um sinal de lesão renal ativa. Consequentemente, quanto maior for a proteinúria, mais rápida costuma ser a perda da função renal residual.

Diabetes

Diabéticos tendem a ter comprometimento renal mais acelerado, frequentemente com proteinúria. Além disso, possuem fatores de risco elevados para doenças cardiovasculares, e normalmente são hipertensas. Todos estes fatores individualmente contribuem para a perda da função renal residual e obviamente quando somados são potencializados. 

Idade avançada

Estudos identificaram que pessoas mais idosas estão sob maior risco de perda da função renal residual.


Referências


Autor(es)

Médica graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com títulos de especialista em Medicina Interna pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pela Universidade do Porto. Nefrologista pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e pelo Colégio de Nefrologia de Portugal.

Saiba mais

Artigos semelhantes

Ficou com alguma dúvida?

Comentários e perguntas

Deixe um comentário


12 respostas para “Urina na diálise – Função renal residual”

  1. Markione Borges

    Minha avó retirou o rim direito por conta de uma infecção urina, no qual ocasionou pus no rim, depois de 4 meses ela apresentou novamente uma infecção, agora no outro rim restante, os médicos informaram que o rim deixou de trabalhar e estão cogitando se ela tem ou não condições de fazer a Hemodiálise.

    Ela se sente muito bem, diz que quer voltar para casa, mas o quadro de infecção ainda esta sendo resolvido com o medicamentos.

    Minha pergunta é… Caso ela venha fazer hemodiálise é muito ruim? Ela tem 86 anos, tem diabetes e por conta do quadro, esta com anemia.

    Tem médico que fala para ela nem fazer a Hemodiálise, porém se não fizer, ela morre.

    Uma observação: Ela tem incontinência Urinária, eu levei ela no médico, assim que notei que na fralda dela não estava vindo urina, apenas pus.

    1. Avatar de Dr. Pedro Pinheiro
      Dr. Pedro Pinheiro
      Se ela ainda é uma pessoa ativa, a hemodiálise vai ajudá-la. A gente só não indica início de hemodiálise para pessoas idosas que já estão muito fragilizadas, geralmente acamadas e totalmente dependentes de terceiros.
  2. Viviane

    Minha mãe faz há 6 meses hemodiálise, ela tem função renal residual e o xixi saída bem clarinho. Porém há 2 semanas quando ela sai da sessão de hemodiálise a urina vem se apresentando de cor amarela como seria a urina normal. Gostaria de saber se isso pode ser positivo para o tratamento dela.

    1. Avatar de Dr. Pedro Pinheiro
      Dr. Pedro Pinheiro
      Não me parece que seja algo relevante.
  3. Cristina dos Anjos

    Bom dia!

    Meu pai é doente renal cronico e também tem insuficiencia cardiaca. Faz dois anos que ele faz a dialise, mas todos os dias é uma luta! Ele perdeu muita qualidade de vida e tem muitos sintomas após a diálise. Sente nauseas, febre, dores musculares e calafrios e calores. Gostaria de saber se há algum medicamento ou tratamento para controle destes sintomas. Todos em casa tem sofrido muito. Obrigada

    1. Avatar de Dr. Pedro Pinheiro
      Dr. Pedro Pinheiro
      Não. O que deve ser feito é adequar as sessões de hemodiálise ao estado clínico dele. O paciente não deve sair se sentindo mal das sessões. Há algo de errado.
  4. Aparecida

    Bom dia meu marido e cid 18.0 gostaria de saber quais as chances de um transplante ou nenhuma ele tem 53 anos já teve aumento do coração estágio 3 de pressão as pernas totalmente inchada criando edemas com bolhas cãibras incontrolável, notei que não urina mais

    1. Avatar de Dr. Pedro Pinheiro
      Dr. Pedro Pinheiro
      Se ele está tão descompensado, agora não é hora de pensar no transplante. Ele precisa primeiro começar a diálise, ficar bem, e aí sim, pode-se pensar em transplante, se a função cardíaca dele permitir.
  5. Ana varela

    Um doente renal pode deixar de fazer dialize se melhora a função renal? O que pode ajudar nesse sentido. Muito obrigada

    1. Avatar de Dr. Pedro Pinheiro
      Dr. Pedro Pinheiro
      Se for uma lesão renal aguda reversível, tipo intoxicação, infecção, desidratação, efeito de remédios ou obstrução urinária, o paciente pode recuperar a função renal e deixar de fazer diálise. No caso dos pacientes com insuficiência renal crônica, isso é bem menos provável, pois a lesão renal que eles têm costuma ser irreversível.
      1. Ana Varela

        O meu marido tem 72 anos e possível transplante?

        1. Avatar de Dr. Pedro Pinheiro
          Dr. Pedro Pinheiro
          Depende do estado clínico geral dele.