O que é leishmaniose?
A leishmaniose é um conjunto de doenças causadas por protozoários do gênero Leishmania, parasitas encontrados em quase todos os continentes, exceto Austrália e Antártica. Até o momento, foram identificadas mais de 20 espécies de Leishmania, cada qual associada a diferentes manifestações clínicas da doença.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a leishmaniose como uma das seis doenças infecciosas mais importantes do mundo. Cerca de 2 milhões de novos casos são registrados anualmente. Apesar de sua relevância, a leishmaniose é considerada uma doença negligenciada, pois afeta principalmente populações de baixa renda, com acesso limitado a recursos médicos e baixo potencial de gerar lucro para a indústria farmacêutica.
No Brasil, a leishmaniose está presente em todos os estados e representa um desafio contínuo para o sistema de saúde pública.
Transmissão
A transmissão da leishmaniose ocorre pela picada de insetos chamados flebotomíneos, pertencentes ao gênero Lutzomyia, popularmente conhecidos como mosquito-palha, tatuquira, birigui, entre outros nomes regionais. Apesar de sua semelhança com os mosquitos comuns, pertencem a uma família distinta e são pequenos o suficiente para atravessar as malhas de mosquiteiros e telas.
A tabela abaixo resume as principais diferenças entre o mosquito comum e o Lutzomyia longipalpis, transmissor da leishmaniose.
Características | Lutzomyia | Mosquito Comum |
---|---|---|
Aparência física | Pequeno (2 a 3 mm). Corpo com pelos. Asas abertas em forma de “V”. Voo silencioso. | Maior (5 a 10 mm). Corpo liso e brilhante. Asas paralelas ao corpo. Voo com zumbido. |
Comportamento de voo | Voo curto, errático e saltitante. | Voo mais estável e de maior alcance (até 2 km). |
Hábitos alimentares | Prefere animais silvestres, humanos e cães. Pica geralmente à noite. Picadas quase imperceptíveis. | Prefere humanos e outros animais. Picadas perceptíveis e irritantes. |
Habitat | Áreas rurais e florestais. Locais úmidos, como troncos, folhas e buracos. | Ambientes urbanos. Áreas com água parada para reprodução. |
Capacidade de atravessar barreiras | Pequeno o suficiente para atravessar telas e mosquiteiros. | Maior e tem dificuldade de atravessar mosquiteiros convencionais. |
O Lutzomyia longipalpis só transmite o parasita após picar um animal infectado. A leishmaniose é uma zoonose, e as principais fontes de infecção são animais silvestres, mas cães domésticos também podem ser hospedeiros. Humanos são contaminados ao frequentar áreas endêmicas, seja como turistas ou residentes. Após a picada, o parasita pode causar diferentes manifestações clínicas, dependendo da espécie envolvida e da resposta do hospedeiro.
Não há transmissão direta de pessoa para pessoa. A leishmaniose é uma zoonose. O mosquito só transmite a leishmania se tiver picado um animal infectado.
Classificação
Quando o ser humano é picado pelo inseto que carrega a leishmania, ele pode desenvolver dois tipos de doença:
- Leishmaniose tegumentar, que afeta pele e mucosas.
- Leishmaniose visceral, também conhecida como calazar, que afeta órgãos internos.
O que define se o paciente terá a forma cutânea ou a forma visceral é o tipo de leishmania que o contamina.
Leishmaniose tegumentar (cutânea e mucosa)
A forma tegumentar é mais prevalente no Brasil e em outros países como Afeganistão, Irã, Peru e Arábia Saudita. Após a picada do mosquito, o parasita se instala na pele, provocando lesões características.
Existem quatro subtipos de leishmaniose tegumentar:
Leishmaniose cutânea localizada
A Leishmaniose cutânea localizada caracteriza-se pelo surgimento de uma úlcera indolor, geralmente arredondada ou ovalada, com bordas elevadas, em áreas expostas do corpo. As lesões podem variar de poucos milímetros a vários centímetros e tendem a cicatrizar espontaneamente em semanas ou meses. Em alguns casos, podem ocorrer múltiplas lesões (até 20) simultâneas. Essa forma habitualmente responde bem ao tratamento.
Leishmaniose cutânea disseminada
A leishmaniose cutânea disseminada é a forma mais rara, ocorrendo em cerca de 2% dos casos. É caracterizada por múltiplas lesões papulares e acneiformes (semelhantes à acne) espalhadas pelo corpo, que podem chegar a centenas, incluindo face e tronco. Inicialmente, surgem lesões semelhantes às da forma localizada; posteriormente, ocorre a disseminação do parasita pelo sangue, resultando em lesões distantes da área da picada em poucos dias. Com frequência, há sintomas sistêmicos como febre, dores musculares, mal-estar e emagrecimento.
No Brasil, esta forma é normalmente causada pelas espécies leishmania amazonensis e leishmania braziliensis.
Apesar da gravidade aparente, responde bem ao tratamento.
Leishmaniose cutânea difusa
A leishmaniose cutânea difusa é a forma crônica e grave, resultante da incapacidade do sistema imunológico de controlar a proliferação do parasita no corpo. Não há úlceras, as lesões são nodulares ou em placas, cobrindo grandes áreas do corpo e frequentemente causando deformidades.
Essa forma responde mal ao tratamento e apresenta altas concentrações de parasitos nas lesões.
No Brasil, essa forma de leishmaniose é causada pela espécie leishmania amazonensis.
Leishmaniose mucosa (ou muco-cutânea)
A leishmaniose mucosa surge em 3 a 5% dos casos e afeta principalmente as mucosas do nariz, boca e vias aéreas superiores. Costuma ser indolor. É caracterizada por resposta imunológica exacerbada e ineficaz, com destruição dos tecidos onde se localiza a infecção e má resposta ao tratamento.
Pode causar destruição tecidual significativa e geralmente ocorre após a cicatrização de uma lesão cutânea (espontânea ou após tratamento ineficaz), embora também possa surgir isoladamente. A resposta ao tratamento pode ser insatisfatória.
Leishmaniose visceral (calazar)
A leishmaniose visceral é a forma sistêmica da doença, causada no Brasil pela Leishmania chagasi. Com um período de incubação que varia de 2 a 6 meses, ela apresenta ampla diversidade clínica, podendo ser assintomática ou grave. As formas graves apresentam taxa de mortalidade 90% se não forem adequadamente tratadas.
O calazar caracteriza-se pelo acometimento de órgãos internos pela Leishmania e, diferentemente das formas tegumentares, que afetam apenas a pele e mucosas, compromete múltiplos sistemas e órgãos, podendo levar a manifestações graves e potencialmente fatais.
Nos casos iniciais, os sintomas incluem:
- Febre prolongada.
- Anemia.
- Aumento do baço (esplenomegalia) e do fígado (hepatomegalia).
Na ausência de tratamento, a doença pode evoluir, causando:
- Perda de peso significativa.
- Alterações hematológicas, como redução de plaquetas e leucócitos.
- Infecções bacterianas secundárias.
- Hemorragias.
- Comprometimento de órgãos como fígado e rins.
Os casos graves podem levar o paciente ao óbito se não diagnosticados e tratados precocemente.
Diagnóstico
O diagnóstico depende da forma clínica. Na leishmaniose tegumentar, o aspecto das lesões e o histórico epidemiológico são fundamentais, mas o diagnóstico definitivo é feito pela confirmação do parasita em biópsias ou esfregaços. Na leishmaniose visceral, o parasita pode ser identificado em amostras de medula óssea, fígado ou baço.
Outros métodos incluem:
- Intradermoreação de Montenegro.
- Testes sorológicos (RIFI, ELISA)
Intradermoreação de Montenegro
Teste realizado com injeção intradérmica de antígenos (proteínas) de leishmania. Caso o doente já tenha entrado em contato com o parasita (está infectado ou já esteve), ocorre uma reação inflamatória no local da injeção. Pode, portanto, ser positivo após tratamento bem-sucedido e negativo na forma cutânea difusa, uma vez que depende da resposta imunológica do indivíduo. Nos casos de calazar, o teste é negativo, tornando-se positivo somente após a cura clínica.
Diagnóstico imunológico:
Utiliza-se a imunofluorescência indireta (RIFI) e o ELISA. Estes testes detectam os anticorpos anti-leishmania circulantes no sangue de pessoas que já entraram em contato com o parasito. Por isso, não devem ser utilizados como critério isolado para diagnóstico na ausência de outros dados clínicos e laboratoriais.
Tratamento
Os antimoniais pentavalentes são o tratamento de primeira escolha, administrados por via intramuscular ou intravenosa por pelo menos 20 dias. Outras opções terapêuticas incluem anfotericina B, pentamidina e paromomicina, especialmente em casos graves ou refratários.
Os antimoniais podem causar efeitos colaterais graves, como arritmias cardíacas, sendo contraindicados em gestantes no início da gravidez e em pacientes com insuficiência hepática ou renal.
No Brasil, estão sendo desenvolvidas vacinas contra a leishmaniose, com estudos em fases avançadas, representando uma esperança para o controle da doença no futuro.
Referências
- Cutaneous leishmaniasis: Clinical manifestations and diagnosis – UpToDate.
- Visceral leishmaniasis: Clinical manifestations and diagnosis – UpToDate.
- Cutaneous leishmaniasis: Treatment – UpToDate.
- Visceral leishmaniasis: Treatment – UpToDate.
- Manual de vigilância da Leishmaniose Tegumentar – Ministério da Saúde do Brasil.
- Manual de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral – Ministério da Saúde do Brasil.
Autor(es)
Médico graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com títulos de especialista em Medicina Interna e Nefrologia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), Universidade do Porto e pelo Colégio de Especialidade de Nefrologia de Portugal.
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