Transexualidade: evolução histórica médica e cirúrgica

Dra. Claudia Miliauskas & Dr. Pedro Pinheiro

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História da transexualidade

A história da relação entre a medicina e a transexualidade remonta ao século XX, com a contribuição de pioneiros como Magnus Hirschfeld, David Cauldwell e Harry Benjamin.

Embora a história da relação entre a medicina e a transexualidade tenha sido complexa e, às vezes, controversa, as contribuições desses pioneiros foram cruciais para o reconhecimento e tratamento da transexualidade com o auxílio da medicina.

Neste artigo resumiremos os pontos históricos sobre a transexualidade e a disforia de gênero aos olhos da medicina. Para uma visão mais conceitual sobre o assunto, incluindo explicações sobre os termos transexualidade, disforia de gênero e identidade de gênero, sugerimos a leitura do artigo: Introdução à identidade de gênero e LGBTQIA+.

Magnus Hirschfeld

Magnus Hirschfeld (1868 – 1935), médico e sexólogo alemão, conduziu estudos sobre comportamento sexual e homossexualidade e foi um dos primeiros a utilizar os termos “travesti” e “transexual”.

Nascido na Prussia, Hirschfeld mudou-se para Berlim em 1896, 4 anos após se formar em medicina, onde se envolveu ativamente no estudo científico da sexualidade – em particular, da homossexualidade – e nos esforços de defesa em nome das minorias sexuais.

Hirschfeld sustentava que a orientação sexual era inata e não uma escolha deliberada, e acreditava que a compreensão científica da sexualidade promoveria a tolerância das minorias sexuais. Seus estudos o tornaram um proeminente defensor dos direitos dos homossexuais no início do século XX.

David Cauldwell

David Cauldwell (1897 – 1959), medico e sexólogo americano, classificou a transexualidade como uma “psicopatia transexual”, considerada à época uma patologia.

Em 1949, ele usou o termo transexual em seu ensaio Psychopathia Transexualis para descrever indivíduos cujo sexo designado no nascimento era diferente de sua identidade de gênero.

Cauldwell diferenciava o “sexo biológico” do “sexo psicológico” e via este último como determinado pelo condicionamento social. Ele negava que houvesse modos de pensar intrinsecamente ligados à biologia masculina ou feminina.

Devido a essa visão do gênero como plástico e por causa das limitações da ciência médica, ele considerava a cirurgia de mudança de sexo uma resposta inaceitável ao transexualismo. Em vez disso, defendia que ele fosse tratado como um transtorno mental. Ele defendia a aceitação da homossexualidade e do travestismo.

Harry Benjamin

Harry Benjamin (1885 – 1986) foi um endocrinologista e sexólogo americano nascido na Alemanha, conhecido por seu papel pioneiro no reconhecimento da transexualidade e no desenvolvimento de intervenções médicas para indivíduos transexuais e transgêneros.

Harry Benjamin popularizou o termo “transexual” e definiu os primeiros critérios diagnósticos da transexualidade em seu livro “The Transsexual Phenomenon” de 1966, no qual defendia que a intervenção cirúrgica era a melhor resposta para casos de transexualidade.

Em sua época, o tratamento recomendado para indivíduos que desejavam troca de sexo era a terapia psicanalítica, cujo objetivo era fazer com que “a mente se adaptasse ao corpo”. Benjamin, no entanto, não estava convencido da eficácia dessa abordagem.

Na obra “The Transsexual Phenomenon“, ele argumenta que a psicanálise não diminuía o desejo de mudar de sexo; ela simplesmente forçava os pacientes a se esconderem de seus desejos e a levarem uma vida miserável. Em vez disso, Benjamin defendia que os transexuais recebessem hormônios para o sexo que desejavam se tornar, em uma tentativa de adequar o corpo à mente. Benjamin também defendeu a cirurgia para os pacientes considerados por médicos especialistas como adequados aos critérios de diagnóstico de transexuais.

Evolução das classificações médicas da transexualidade

Definições atuais

Atualmente, os termos transgênero e transexual têm definições um pouco diferentes daquelas utilizadas pelos sexólogos do início do século XX.

  • Transgênero: esse é um termo guarda-chuva que abrange uma ampla gama de identidades de gênero que não se alinham ao sexo biológico atribuído ao nascer. Uma pessoa transgênero pode se identificar como homem, mulher, não-binária, entre outras identidades. Transgêneros podem ou não optar por fazer a transição de gênero através de mudanças sociais, hormonais ou cirúrgicas.
  • Transexual: esse termo é mais específico e geralmente se refere a pessoas que sentem uma incongruência entre seu sexo biológico e sua identidade de gênero, e que optam por fazer a transição de gênero através de tratamentos hormonais e/ou cirurgias de redesignação sexual (anteriormente conhecidas como cirurgias de mudança de sexo). Portanto, transexuais são um subgrupo dentro da categoria mais ampla de transgêneros.

Disforia de gênero

A transexualidade foi categorizada como “disforia de gênero” pela primeira vez na terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), em 1980.

Em 1990, foi incluída na Classificação Internacional de Doenças – 2ª versão (CID-2), publicação promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), como “perturbação da identidade sexual”. 

Apenas em 2019, por meio do CID-11 (atual), a OMS removeu a transexualidade da lista de transtornos mentais, sendo reclassificada como “incongruência de gênero”, pertencente à seção de saúde sexual. 

Atualmente, definimos disforia de gênero quando há um incômodo pela inconformidade entre o gênero ao qual o paciente se identifica e o seu sexo biológico. O Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-5) inclui a disforia de gênero como um diagnóstico para pessoas cujo sofrimento é clinicamente significativo e prejudica o funcionamento social, profissional ou de outras áreas importantes. O grau e a gravidade da disforia de gênero são variáveis entre as pessoas transgênero.

Histórico da redesignação sexual 

Com base nas experiências de Eugen Steinach em animais, Hirschfeld iniciou a realização de mudanças de sexo em humanos no Instituto de Ciência Sexual em Berlim, Alemanha, fundado por ele em 1919.

Nesse instituto, Félix Abraham se tornou o primeiro cirurgião a realizar a operação de mudança de sexo em Dorchen Richter, em 1921. Em 1930 a cirurgia de redesignação sexual foi realizada também em Lili Elbe – retratada no filme “A garota Dinamarquesa” – tornando-se uma das primeiras cirurgias de mudança de sexo da história.

Histórico da redesignação sexual

À época em que os estudos sobre a transexualidade e os avanços nas técnicas cirúrgicas para redesignação sexual cresciam no cenário alemão, Adolf Hitler assumiu o poder, em janeiro de 1933, realizando uma grande queima de arquivos e promovendo uma “limpeza” literária, e com isso, destruindo também os arquivos sediados no Instituto.

Anos mais tarde, a cirurgia de redesignação sexual ocorrida na Dinamarca em 1952, de Christine Jorgensen, ex-militar do exército norte-americano, ganhou enorme destaque na imprensa da época, sendo divulgada em jornais estadunidenses, como The Daily Mirror, com o título “Dear Mum and Dad, son wrote, I’ve now become your daughter” (“Queridos papai e mamãe, o filho escreveu, agora me tornei sua filha”) e no jornal New York Daily News, sob o título “Ex-GI becomes blonde beauty: operations transform Bronx youth” (“Ex-soldado do Exército Americano torna-se uma beldade loira: operações transformam jovens do Bronx”).

Com o resultado, o procedimento recebeu uma grande visibilidade, se tornando o principal modelo médico de intervenção para os casos de transexualidade.

Entre as décadas de 1950 e 1970, surgiram as primeiras unidades médicas nos Estados Unidos destinadas a pessoas com não conformidade de gênero. Os primeiros programas foram criados na Universidade da Califórnia de Los Angeles, em 1962, e na Universidade John Hopkins, em Baltimore, em 1966. Nestas instituições, tratamentos cirúrgicos e hormonais começaram a ser realizados.

Em 1963, o empresário e filantropo Reed Erickson iniciou um processo de masculinização administrado pelo médico Harry Benjamin. Sua experiência pessoal na transição de gênero e seu ativismo contribuíram para a conscientização e o avanço dos direitos e da compreensão das questões transgênero na sociedade, tendo fundado em 1964 a The Erickson Educational Foundation.

A Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association (HBIGDA), fundada em 1979, desempenhou um papel fundamental no estabelecimento de diretrizes médicas para a transição de gênero, incluindo terapia hormonal e cirurgia de redesignação sexual, sendo responsável pelo primeiro protocolo oficial de tratamento de redesignação sexual. Em 1998, a organização mudou seu nome para World Professional Association for Transgender Health (WPATH).

Cirurgias de redesignação sexual nos dias atuais

As cirurgias de redesignação sexual, também conhecidas como cirurgias de confirmação de gênero, evoluíram significativamente desde as primeiras operações realizadas no início do século XX. Hoje em dia, estas cirurgias são feitas de acordo com protocolos médicos rigorosos e são realizadas em hospitais e clínicas especializadas. As cirurgias são uma opção para aqueles que desejam alinhar seu corpo físico com sua identidade de gênero.

Os critérios para a realização de cirurgias de redesignação sexual são definidos por organizações como a WPATH, que estabelece diretrizes baseadas em pesquisas científicas, experiências clínicas e consenso profissional.

As diretrizes para a realização de cirurgias de redesignação sexual geralmente incluem a necessidade de uma avaliação abrangente, que pode envolver profissionais de saúde mental, endocrinologistas, cirurgiões e outros profissionais da área médica. A WPATH sugere que as pessoas devem ter um diagnóstico de disforia de gênero, demonstrar um conhecimento claro das implicações, riscos e benefícios da cirurgia, e viver como seu gênero de identidade por um período de tempo antes da cirurgia.

As cirurgias de redesignação sexual podem envolver várias etapas e procedimentos, que variam dependendo das necessidades individuais da pessoa. O processo pode incluir cirurgia de modificação de características sexuais secundárias, como mastectomia ou cirurgia de feminização facial, bem como cirurgia de modificação de genitais, como vaginoplastia (cirurgia de redesignação sexual feminina que envolve a criação de uma vagina) ou faloplastia (cirurgia de redesignação sexual masculina que envolve a construção de um pênis artificial).

Ao longo das décadas, os avanços na medicina e a crescente compreensão da diversidade de gênero têm contribuído para a melhoria das técnicas cirúrgicas e dos cuidados pós-operatórios. A experiência de cada pessoa no processo de transição é única, e as decisões sobre cirurgia de redesignação sexual são pessoais e devem ser tomadas em consulta com profissionais de saúde qualificados.

Este artigo foi escrito pela Profa. Dra. Claudia Miliauskas e pelos estudantes de graduação da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ: Thiago Braz, Mariana Fialho Araújo da Silva, Maria Luiza Magalhães Miranda, João Gabriel Freitas Gouvêa e Kelly Soares Correia. O texto foi adaptado à Internet pelo Dr. Pedro Pinheiro.


Referências

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Autor(es)

Professora adjunta de Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (FCM/UERJ). Doutorado concluído pelo Instituto de Medicina Social/UERJ, departamento de epidemiologia/saúde coletiva. Mestrado em saúde materno-infantil pela Universidade Federal Fluminense. Especialização em terapia familiar sistêmica. Residência médica em pediatria e psiquiatria.

Médico graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com títulos de especialista em Medicina Interna e Nefrologia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), Universidade do Porto e pelo Colégio de Especialidade de Nefrologia de Portugal.

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