Saúde da população trans: protocolos e desafios no Brasil

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Assistência à Saúde e Processo Transexualizador no Brasil

Quando pensamos em população trans, uma das primeiras dificuldades encontradas na construção de políticas de saúde é a falta de informações, visto que as principais pesquisas não contêm perguntas acerca de identidade de gênero ou orientação sexual e, portanto, não acompanham a realidade do país.

Como exemplo, podemos citar a ausência de informações oficiais sobre o número de pessoas aguardando procedimentos cirúrgicos de redesignação sexual. Fica a questão: como realizar a assistência em saúde para uma população cuja existência sequer é reconhecida?

No Brasil, a Política Nacional de Saúde Integral de LGBT (PNSI-LGBT) foi instituída em 2011 após muita pressão e diálogo com o movimento LGBT. Há então o reconhecimento de que discriminação e estigmatização por orientação sexual e identidade de gênero são determinantes das condições de vida, saúde, doença e geram sofrimento psíquico. Um dos objetivos da Política é garantir o acesso ao Processo Transexualizador no SUS, ou seja, a possibilidade de conseguir ser assistido de forma integral, incluindo a possibilidade de procedimentos para modificações corporais em pessoas trans.

Abaixo, seguem alguns componentes do processo transexualizador:

  • Acompanhamento multiprofissional para atendimento clínico, não relacionado a pré e pós-operatório;
  • Assistência hormonal;
  • Acompanhamento pré e pós-operatório – por exemplo, na retirada dos testículos e pênis, entre outras. 

Alguns pontos merecem atenção, no sentido da necessidade de avanços, entre eles está a dificuldade de que ações de transformações corporais sejam regulamentadas e realizadas nas Unidades Básicas de Saúde, as quais o acesso é mais rápido e universal.

Outro ponto é o critério de no mínimo 2 anos de acompanhamento multiprofissional antes da realização de cirurgia de redesignação sexual, pois, na prática, devido à dificuldade de acesso a este tipo de tratamento, acaba aumentando o tempo de espera, por vezes gerando mais agravos à saúde, assim como processos judiciais. 

Principais Desafios da População Trans no SUS

No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) é um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo, abrange desde atendimentos na atenção primária, passando por unidades de média e alta complexidade, serviços de urgência e emergência, atenção hospitalar, farmacêutica e processos de vigilância epidemiológica, sanitária e ambiental.

O processo transexualizador foi criado em 18 de agosto de 2008, no SUS. Naquele momento, os procedimentos transgenitalizadores eram oferecidos apenas para as mulheres trans.  Em 2013, homens trans e travestis também passaram a ter esse direito via SUS. 

Pessoas trans podem desejar realizar modificações em sua aparência e em seu corpo, tanto para sentirem-se bem com sua imagem quanto para serem reconhecidas socialmente com o gênero com o qual se identificam.

Existem muitas possibilidades para que estas transformações corporais sejam alcançadas, algumas transitórias e outras permanentes, que incluem próteses, uso de cintas, posturas, treinamentos musculares e vocais, uso de substâncias tópicas, intervenções tradicionalmente consideradas estéticas, hormonização ou mesmo cirurgias – redesignação sexual (mudança de sexo), mastectomia (retirada da mama), histerectomia (retirada do útero), plástica mamária reconstrutiva (incluindo próteses de silicone) e tireoplastia (extensão das pregas vocais para mudança da voz).

O processo de hormonização pode ser feito a partir de 18 anos, já as cirurgias são permitidas somente a partir dos 21 anos de idade. Embora algumas cirurgias só sejam disponibilizadas por serviços privados, diversos procedimentos cirúrgicos são oferecidos pelo SUS em serviços regionais que estão preparados para realizá-las.

A falta de assistência a crianças e adolescentes também é um problema, pois o acompanhamento psicossocial e atendimento familiar não são previstos, assim como bloqueio hormonal para púberes e adolescentes e a hormonização a partir dos 16 anos, apesar de já haver regulamentação pelo Conselho Federal de Medicina (Resolução 2.265/2019). 

Nos artigos “Desigualdades no SUS: o caso do atendimento às travestis é “babado”!’’ (MULLER, M. I.; KNAUTH, D. R.;2008; p.6-11) e “Desafios enfrentados por pessoas trans para acessar o processo transexualizador do Sistema Único de Saúde.” (Rocon PC, Sodré F, Rodrigues A, Barros MEB, Wandekoken;2019;p.4-9), os autores expõem em suas respectivas pesquisas alguns relatos de pessoas trans que apontam fortes sentimentos de tristeza e de angústia frente à discriminação vivenciada nos serviços de saúde. Os relatos de discriminação se dão desde o desrespeito ao uso do nome social nos serviços de saúde, passando por outras situações de violência como “chacotas”, humilhações, discriminações, entre outras. Essas vivências podem levar a população trans a evitar o uso dos equipamentos e serviços de saúde, refletindo na piora de suas condições física e mental. 

As travestis também afirmam falta de qualificação dos profissionais para demandas relacionadas ao processo de transição no gênero, no auxílio com os cuidados pós-cirúrgicos e no uso dos hormônios. Além disso, outra demanda explicitada nesses estudos é a reivindicação de treinamento específico sobre o tema para profissionais da psicologia, que por vezes favorecem situações de discriminação e sentimentos de exclusão, na tentativa de cura da transexualidade ou encorajamento a desistência da realização dos procedimentos transexualizadores. 

A prática clínica, em geral, ainda é bastante pautada na psiquiatrização da transexualidade, ainda considerado por muitos profissionais da saúde um ‘transtorno de identidade de gênero’, ao invés de uma condição de saúde e exercício da cidadania. Embora a psiquiatrização tenha proporcionado visibilidade às pessoas trans e legitimidade à cirurgia de redesignação sexual como questão de saúde, ela reforça a exclusão social em virtude de seu caráter patologizante.

Podemos citar sete principais desafios à garantia do acesso universal ao SUS pela população trans: (i) a discriminação nos serviços e equipamentos de saúde; (ii) a patologização da transexualidade, (iii) o acolhimento inadequado; (iv) a “necessidade” de pessoas trans se enquadrarem em estereótipos de gênero para terem sua transexualidade legitimada e obterem acesso aos seus direitos na saúde pública; (v) a qualificação dos profissionais; (vi) a ausência de políticas votadas para esta população na atenção básica e, por outro lado a presença de poucos serviços especializados; (vii) a escassez de recursos para o financiamento dos processos transexualizadores e de políticas de promoção da equidade e respeito às identidades de gênero trans.

Podcast Vivendo a Saúde Mental

Pessoal, estamos de volta com o segundo episódio do nosso podcast. Nele, continuaremos a falar com o Pedro, a primeira pessoa trans do estado do Espírito Santo a retificar seu nome e sobrenome direto pelo cartório. Agora, venha descobrir com a gente como foi a trajetória do Pedro pelos sistemas de saúde pelos quais passou.

Este artigo foi escrito pela Profa. Dra. Claudia Miliauskas e pelos estudantes de graduação da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ: Thiago Braz, Mariana Fialho Araújo da Silva, Maria Luiza Magalhães Miranda, João Gabriel Freitas Gouvêa e Kelly Soares Correia.


Referências

  • ROCON, P. C. et al. ACESSO À SAÚDE PELA POPULAÇÃO TRANS NO BRASIL: NAS ENTRELINHAS DA REVISÃO INTEGRATIVA. Trabalho, Educação e Saúde, v. 18, n. 1, 2020.
  • ROCON, P. C. et al. Desafios enfrentados por pessoas trans para acessar o processo transexualizador do Sistema Único de Saúde. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v. 23, 2019.
  • MULLER, M. I.; KNAUTH, D. R. Desigualdades no SUS: o caso do atendimento às travestis é “babado”!. Cadernos EBAPE.BR, v. 6, n. 2, p. 01-14, jun. 2008.
  • ‌LOPES, E. M. et al. MUITO ALÉM DE ESTEREÓTIPOS, DIREITO À SAÚDE DA POPULAÇÃO TRANS. Semana Acadêmica do Curso de Medicina da UFFS – Campus Chapecó, v. 4, n. 4, 21 mar. 2021.
  • ‌MARÍA, A.; RODRIGUEZ, M. UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE DEPARTAMENTO DE SAÚDE PÚBLICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/129499/329251.pdf?sequence=1&isAllowed=y>.
  • ROCON, P. C. et al. O que esperam pessoas trans do Sistema Único de Saúde? Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v. 22, n. 64, p. 43–53, 7 dez. 2017.
  • ‌SILVA, L. K. M. DA et al. Uso do nome social no Sistema Único de Saúde: elementos para o debate sobre a assistência prestada a travestis e transexuais. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 27, n. 3, p. 835–846, jul. 2017.

Autor(es)

Professora adjunta de Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (FCM/UERJ). Doutorado concluído pelo Instituto de Medicina Social/UERJ, departamento de epidemiologia/saúde coletiva. Mestrado em saúde materno-infantil pela Universidade Federal Fluminense. Especialização em terapia familiar sistêmica. Residência médica em pediatria e psiquiatria.

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