O que é um tipo sanguíneo?
Na virada do século XIX para o século XX, mais especificamente em 1900, o médico austríaco Karl Landsteiner notou que quando juntamos amostras de sangue de pessoas diferentes, dois resultados poderiam ocorrer:
- Em alguns casos, os sangues se misturavam sem haver nenhum problema.
- Em outros, os sangues não se misturavam, havendo uma intensa reação que levava à destruição das hemácias (glóbulos vermelhos) e ampla formação de coágulos.
Foi através deste experimento que surgiu o conceito de sangue compatível e sangue incompatível.
Baseado em seus experimentos, Landsteiner descreveu três tipos de sangue, chamados tipo A, tipo B e tipo O ou tipo 0 (zero), dando origem à famosa classificação ABO dos grupos sanguíneos*.
* Algumas fontes chamam a classificação dos grupos sanguíneos de ABO e outras de AB0 (A, B, zero). As duas formas são aceitáveis.
Essa descoberta rendeu-lhe o prêmio Nobel de Medicina em 1930. Dois anos depois, um quarto grupo sanguíneo foi identificado: o tipo AB, formando, assim, os 4 grupos sanguíneos atualmente utilizados no sistema ABO.
Em 1940, o mesmo Karl Landsteiner descobriu a existência do chamado fator Rh, que era responsável pela incompatibilidade de alguns tipos de sangue mesmo quando o sistema ABO era respeitado. A partir desta descoberta, os indivíduos foram classificados como Rh positivo ou Rh negativo, consoante a existência ou não do fator Rh em seus sangues.
Atualmente, as transfusões sanguíneas utilizam as classificações AB0 e Rh para evitar que um sangue incompatível seja administrado em um paciente que necessita de transfusão.
Sendo assim, são 8 os tipos sanguíneos:
- A+ (grupo sanguíneo A com fator Rh positivo).
- B+ (grupo sanguíneo B com fator Rh positivo).
- AB+ (grupo sanguíneo AB com fator Rh positivo).
- O+ (grupo sanguíneo O com fator Rh positivo).
- A- (grupo sanguíneo A com fator Rh negativo).
- B- (grupo sanguíneo B com fator Rh negativo).
- AB- (grupo sanguíneo AB com fator Rh negativo).
- O- (grupo sanguíneo O com fator Rh negativo).
A frequência dos grupos AB0 muda de acordo com etnia do indivíduo. Atualmente, a distribuição mundial é aproximadamente a seguinte:
- Brancos → 44% são O, 43% são A, 9% são B e 4% são AB.
- Negros → 49% são O, 27% são A, 20% são B e 4% são AB.
- Asiáticos → 43% são O, 27% são A, 25% são B e 5% são AB.
Sistema ABO
O nosso sangue é composto por uma parte líquida, chamada plasma, e uma parte sólida, que contém as células do sangue, nomeadamente hemácias, leucócitos e plaquetas. Em média, 55% do sangue é líquido e 45% é composto por células.
As hemácias contêm algumas proteínas em sua superfície que são chamadas antígenos ou aglutinogênios. São esses antígenos que receberam os nomes de A, B, AB e O. A incompatibilidade entre os sangues surge quando há diferenças entre as proteínas presentes nas superfícies das hemácias do doador e do receptor.
Na verdade, existem apenas dois tipos de antígenos, que são o A e o B:
- Se um indivíduo tiver antígenos A na superfície das suas hemácias, o sangue dele é classificado como tipo A.
- Se um indivíduo tiver antígenos B na superfície das suas hemácias, o sangue dele é classificado como tipo B.
- Se um indivíduo tiver antígenos A e antígenos B na superfície das suas hemácias, o sangue dele é classificado como tipo AB.
- Se um indivíduo não tiver nem o antígeno A nem o antígeno B na superfície das suas hemácias, o sangue dele é classificado como tipo O (ou tipo zero).
A incompatibilidade sanguínea ocorre pela presença de anticorpos ou aglutininas no sangue, que segue a seguinte lógica:
- Um indivíduo com hemácias que apresentam antígenos A na superfície (tipo sanguíneo A) possui anticorpos contra hemácias com antígenos B. Portanto, qualquer sangue que contenha antígenos B será rejeitado.
- Um indivíduo com hemácias que apresentam antígenos B na superfície (tipo sanguíneo B) possui anticorpos contra hemácias com antígenos A. Sendo assim, qualquer sangue que contenha antígenos A será rejeitado.
- Um indivíduo com hemácias que apresentam antígenos A e B na superfície (tipo sanguíneo AB) não possui anticorpos nem contra hemácias com antígenos B nem contra hemácias com antígenos A. Como não há anticorpos, todos os tipos de sangue podem ser transfundidos.
- Um indivíduo com hemácias que não apresentam nem antígenos A nem antígenos B na superfície (tipo sanguíneo O) possui anticorpos contra hemácias com antígenos A e contra hemácias com antígenos B. Logo, qualquer sangue que contenha antígenos A ou B será rejeitado. Isso significa que esse indivíduo só pode receber sangue do tipo O.
Sistema Rh
O sistema Rh segue a mesma lógica do sistema ABO. O antígeno Rh, também chamado de antígeno D, pode ou não estar presente nas membranas das hemácias. Se estiver presente, o paciente é classificado como Rh positivo. Pacientes Rh positivo não têm anticorpos contra o antígeno Rh.
Por outro lado, se o paciente não expressar o antígeno Rh nas membranas das hemácias, ele é classificado como Rh negativo. Pacientes Rh negativos também não possuem anticorpos contra o antígeno Rh, mas podem desenvolvê-los, caso sejam expostos a sangue Rh+.
Compatibilidade da transfusão de sangue
Um paciente não pode receber um tipo de sangue do qual ele possui anticorpos contra. Por exemplo, um paciente com sangue B não pode receber sangue de um paciente com sangue A, pois os seus anticorpos contra o antígeno A irão destruir as hemácias transfundidas quase que imediatamente.
A tabela abaixo mostra todas as possibilidades de compatibilidade para doadores e receptores de transfusão sanguínea.
Genética do sistema ABO
O tipo sanguíneo do indivíduo é uma herança genética dos seus pais. Como ele é definido por apenas um gene, é relativamente fácil prever o grupo sanguíneo do filho se soubermos o dos pais.
As explicações a seguir são voltadas para pessoas que têm um mínimo de conhecimento sobre genética mendeliana, que costuma ser ensinada nas aulas de biologia da escola. Se você não tem interesse nessas informações, pule direto para o próximo tópico, no qual explicaremos o que acontece quando há uma transfusão incompatível.
O gene ABO pode ter 3 tipos de alelos: i, IA ou IB. As combinações entre esses alelos é que dão origem aos grupos sanguíneos. O alelo i é recessivo, enquanto os alelos IA ou IB são dominantes.
Lembrando que todos recebemos um alelo do pai e outro da mãe, os grupos sanguíneos são formados pelas seguintes combinações:
- Tipo sanguíneo A: i + IA ou IA + IA.
- Tipo sanguíneo B: i + IB ou IB + IB.
- Tipo sanguíneo AB: IA + IB.
- Tipo sanguíneo O: i + i.
A tabela abaixo mostra os possíveis grupos sanguíneos dos filhos consoante os grupos dos pais.
Na prática, nem sempre é fácil estimar qual será o grupo sanguíneo do filho, pois a imensa maioria de nós sabe qual é o nosso grupo sanguíneo, mas não sabe a composição dos alelos do gene ABO que deram origem a ele. E conforme pode ser observado na tabela, uma pessoa do grupo sanguíneo A, que tem os alelos i + IA, tem possibilidades de ter filhos com grupos diferentes de outra pessoa também com grupo sanguíneo A, mas com alelos IA + IA.
Genética do sistema Rh
O fator RH também é determinado geneticamente e segue um padrão comum de herança genética. O alelo Rh positivo (Rh+) é dominante (mais forte) e mesmo quando emparelhado com um alelo Rh negativo (Rh-), o gene positivo assume o seu lugar.
Exemplos:
- Se uma pessoa tiver os alelos (Rh+) e (Rh+), o fator Rh no sangue será positivo.
- Se uma pessoa tiver os alelos (Rh+) e (Rh-), o fator Rh também será positivo.
- Se uma pessoa tiver os alelos (Rh-) e (Rh-), o fator Rh será negativo.
Um bebê recebe um gene do pai e outro da mãe. Sendo assim, as cinco possibilidades são as seguintes:
1. Se os genes do fator Rh do pai são + e +, e os da mãe são + e +, o bebê receberá obrigatoriamente um alelo + do pai e um alelo + gene da mãe. Portanto, ele será Rh positivo (+/+).
2. Se os genes do fator Rh do pai são + e +, e os da mãe são – e -, o bebê receberá obrigatoriamente um alelo + do pai e um alelo – gene da mãe. Portanto, ele será Rh positivo (+/-).
3. Se os genes do fator Rh do pai e da mãe são + e -, o bebê poderá herdar do pai e da mãe tanto o alelo positivo quanto o negativo. Sendo assim, o filho(a) poderá ter: Fator Rh positivo (+/+), Fator Rh positivo (+/-) ou fator Rh negativo (-/-).
4. Se os genes do fator Rh do pai são – e -, e os da mãe são + e -, o bebê receberá obrigatoriamente um alelo – do pai, mas poderá herdar um alelo – ou + da mãe. Portanto, ele será Fator Rh positivo (+/-) ou fator Rh negativo (-/-).
5. Se os genes do fator Rh do pai e da mãe são – e -, o filho(a) receberá obrigatoriamente um alelo – de cada um. Portanto, ele será fator Rh negativo (-/-).
Exceções às regras de herança do tipo sanguíneo
O tipo sanguíneo é um dos principais exemplos de herança genética que aprendemos na escola. E, como vimos acima, o tipo de sangue que cada pessoa tem segue regras bastante previsíveis de herança.
Mas como em todas as regras, há exceções. Há raros casos em que o sangue do filho ou da filha não bate com os sangues dos pais.
Falaremos rapidamente dos principais motivos pelos quais existem tipos de sangue discordantes entre pais e filhos.
O seu tipo de sangue (o de um dos seus pais) está errado
Os seres humanos cometem erros. Antes de concluir que você não é filho dos seus pais porque os tipos sanguíneos não batem, vale sempre a pena confirmar o tipo de sangue de cada membro da sua família. É muito comum as pessoas se esquecerem ou confundirem o próprio tipo sanguíneo. Também, às vezes, você recebe uma informação equivocada por erro nos resultados de seus testes, devido a alguma confusão no laboratório de análises.
Portanto, se o seu sangue não bate com os dos seus pais, o primeiro passo é repetir os testes e confirmar o tipo sanguíneo de cada um.
Você realmente não é filho(a) de um dos seus pais
O padrão de herança do tipo sanguíneo é tão previsível que ele foi usado durante boa parte do século XX como forma de teste de paternidade. Hoje em dia, testes de paternidade mais sensíveis utilizam DNA e os tipos sanguíneos não devem ser usados para confirmar ou rejeitar a paternidade.
Portanto, se o seu sangue não bate com os dos seus pais, um teste de paternidade com DNA pode ser feito para esclarecer a situação.
Quimerismo
Quimera era uma criatura da mitologia grega com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente. O significado genético de “quimera” foi inspirado por esta criatura.
Uma quimera é uma pessoa (ou planta ou animal) composta de células de dois indivíduos diferentes. Como essas células vieram de fontes diferentes, o DNA delas também é diferente.
Normalmente, as suas células têm o seu DNA, e somente o seu DNA. Esta é uma das principais regras da genética. Seu corpo é composto de muitos tipos de células, mas todas elas são construídas usando o mesmo manual de instruções. Todas elas contêm exatamente o mesmo conjunto de DNA.
Mas em quimeras, essa regra é quebrada. As quimeras têm dois conjuntos diferentes de células, com dois conjuntos diferentes de DNA.
O quimerismo pode acontecer de algumas maneiras diferentes:
- Transplante de medula óssea: o receptor de um transplante de medula óssea terá o tipo de sangue do doador. Mas seu esperma/óvulo ainda terá o DNA original do receptor e seu tipo de sangue. Portanto, o tipo de sangue que você passa geneticamente para os seus filhos pode ser diferente do tipo de sangue que circula nos seus vasos.
- Quimerismo de fusão: esse evento raríssimo ocorre quando embriões de gêmeos se fundem e formam um único feto com uma combinação dos conjuntos de DNA de ambos os gêmeos. Se o tipo de sangue é feito pelo DNA de um “gêmeo” e o esperma/óvulo é feito pelo DNA de outro “gêmeo”, padrões de herança genético inesperados podem acontecer. Esse evento parece ser mais comum em gravidezes geradas por fertilização in vitro (FIV).
- Quimerismo sanguíneo: ocorre quando gêmeos não idênticos compartilham sangue durante a gravidez, fazendo com que um ou ambos os gêmeos tenham células sanguíneas mistas. Essa mistura pode causar um tipo de sangue circulante diferente do DNA no esperma/óvulo. Cerca de 1 em cada 12 pares de gêmeos e 1 em cada 5 pares de trigêmeos apresentam quimerismo sanguíneo.
Tipo sanguíneo Cis-AB
Normalmente falamos sobre três versões diferentes (ou alelos) do gene do tipo sanguíneo: A, B, e 0.
Cis-AB é uma rara quarta versão do gene do tipo sanguíneo. É um alelo que cria o sangue do tipo AB por si só. Se você tiver o alelo cis-AB, o outro alelo que você obteve de seus pais não afetará seu tipo sanguíneo. Não importa qual seja, se um dos seus alelos for Cis-AB, você terá o sangue tipo AB.
Conforme vimos acima, em condições normais, um casal com sangue 0 e AB só pode ter filhos com sangue A ou B, nunca AB ou 0.
Porém, se esse AB de um dos pais for, na verdade, um Cis-AB, duas situações podem ocorrer:
- O filho pode herdar esse gene cis-AB e ter também sangue AB.
- Se o sangue AB de um dos pais for formado pelos alelos Cis-AB + i e o do outro for i + i (sangue tipo 0), o filho pode herdar um alelo i de cada um dos pais e ter sangue tipo 0.
Portanto, em raras ocasiões, pais com sangue AB e 0 podem gerar filhos com sangue AB ou 0.
O alelo Cis-AB está presente em menos de 0,01% da população. Essa situação é bem rara.
Fenótipo Bombaim
O grupo sanguíneo de Bombaim, fenótipo de Bombaim ou grupo sanguíneo hh, é um tipo de sangue bastante raro, ocorre em 1 a cada 10 mil pessoas na Índia e em menos de 1 a cada 1 milhão de pessoas no resto do mundo.
Indivíduos com este tipo de sangue apresentam um defeito nos genes que codificam os antígenos dos tipos sanguíneos A e B, conhecido como antígeno H.
Quando esse defeito no gene que codifica o antígeno H existe, não importam os alelos que o paciente tenha, o sangue dele será sempre reconhecido como 0 nos exames de sangue. Porém, isso é um falso sangue 0.
Resumindo: um dos pais pode ter o sangue tipo AB, A ou B, mas a ausência do antígeno H o fará testar como se fosse sangue tipo 0, mesmo que geneticamente o sangue não seja 0. Isso pode gerar filhos com tipos sanguíneos que aparentam ser incompatíveis com os tipos sanguíneos dos pais.
O fenótipo Bombaim é também um problema na hora de doar ou receber sangue, pois quem tem esse tipo sanguíneo só pode doar ou receber sangue de quem também é fenótipo Bombaim.
Transfusão de sangue incompatível
As transfusões de sangue com incompatibilidade ABO costumam provocar um quadro de reação transfusional hemolítica aguda, que ocorre porque os anticorpos Anti-A ou Anti-B atacam e destroem quase que imediatamente as hemácias transfundidas. Essa reação transfusional é uma emergência médica, que pode evoluir para coagulação disseminada intravascular (coagulação do sangue dentro dos vasos sanguíneos por todo o corpo), choque circulatório, insuficiência renal aguda e morte.
Os sintomas dessa forma de reação transfusional iniciam-se habitualmente ainda durante a transfusão. Febre e calafrios são os primeiros sintomas. Dor lombar e urina marrom também podem surgir.
Já as transfusões de sangue com incompatibilidade Rh costumam ser mais brandas. A hemólise (destruição das hemácias) só surge 3 a 30 dias depois e não costuma ser tão grave quanto na incompatibilidade ABO. Anemia e febre costumam ser os sintomas mais comuns. Elevação sanguínea da bilirrubina indireta é outro sinal típico.
O tratamento da reação transfusional hemolítica aguda é feito com interrupção imediata da transfusão e administração maciça de soro fisiológico por via venosa, para impedir que as hemácias hemolisadas obstruam os túbulos renais. Pacientes que evoluem com hipotensão ou insuficiência respiratória devem ser transferidos imediatamente para uma unidade de cuidados intensivos.
Referências
- Guidelines on Assessing Donor Suitability for Blood Donation – World Health Organization (WHO).
- Chapter 5- The ABO blood group – Blood Groups and Red Cell Antigens.
- Blood groups: the past 50 years – Transfusion.
- Red blood cell antigens and antibodies – UpToDate.
- The Rh blood group system: a review – Blood.
- Handbook for Transfusion Medicine – The Joint United Kingdom Blood Transfusion Services Professional Advisory Committee (JPAC).
- Blood Types in Pregnancy – The Children’s Hospital of Philadelphia.
- How is blood type inherited? And do exceptions ever happen? – The Tech Interactive.
Autor(es)
Médico graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com títulos de especialista em Medicina Interna e Nefrologia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), Universidade do Porto e pelo Colégio de Especialidade de Nefrologia de Portugal.
Deixe um comentário